Processo de industrialização, urbanização, êxodo rural, concentração de massa nos grandes centros, trabalho assalariado… tudo isso mudou radicalmente as concepções e estilos de vida nos últimos anos. Só agora, obviamente, vemos os reflexos e resultados desse novo comportamento.
Não preciso voltar a 1800 ou mesmo a um século atrás pra ver contrastes tão pesados, pois foi uma mudança realmente rápida: percebo ao ouvir meus pais contarem como era a vida em seu tempo (nascidos em 1950 e 1955). Só compravam aquilo que não podiam produzir. Faziam seus próprios doces, refeições com os alimentos tirados da horta, as frutas consumidas eram plantadas no quintal, costuravam as próprias roupas, produziam alguns dos próprios produtos domésticos (sabão, sabonete, óleo de fritura). Lembro de ter ficado impressionada de verdade quando minha mãe me contou que minha irmã só ganhou o primeiro par de sapatos aos 12 anos de idade e foi meu pai quem fez!
Com a modernização, entretanto, os espaços diminuíram, a demanda por trabalho fora cresceu, aumentou a necessidade e dependência do dinheiro e, at last but not least, começava a propagação da ideia de progresso individual.
E não, eu não sou contra a modernização. Não quero voltar para a idade da pedra ou coisa parecida, espero que esse não seja o contra-argumento de quem lê esse texto. Confesso que adoro ar-condicionado, microondas e sabem lá como sou adepta de computadores e internet. Porém, a questão aqui não é essa! A questão é: o que a modernização e a industrialização proporcionaram? Qual foi o resultado? O balanço geral é realmente positivo? O que isso significa para as pessoas e suas vidas?
Vejamos.
Foi preciso largar a horta, os animais, a família e ir para as fábricas. Deixar de produzir suas coisas, pois não era mais viável, para produzir para outrem – só assim teria dinheiro e poderia comprar aquilo que você, ironicamente, precisava e já produzia antes desse quadro. Era necessário trabalhar fora, era necessário conseguir dinheiro, era necessário sustentar a família, era necessário tempo… que ninguém tinha. O tempo encurtou! Mas que bom que tudo foi modernizado, assim o universo “conspirava” a seu favor para que tivesse mais tempo livre para… trabalhar. As máquinas fariam tudo por você: costurariam, lavariam, passariam, limpariam, economizando seu tempo. Assim você podia passar o dia inteiro fora, suando e ralando pra ganhar dinheiro e sobreviver, sem ter que se preocupar em fazer aquelas “ninharias”.
E foi assim que as pessoas se tornaram empregados inúteis: sabiam fazer o trabalho de fora, mas não sabiam fazer o trabalho para si. Desaprenderam e se tornaram dependentes por completo do dinheiro, já que não tinham mais a mesma autonomia e autossuficiência de antes.
Trabalhar fora tantas horas por dia para sustentar a família acabou deixando o homem sem tempo para a própria família. Estresse, cansaço, falta de tempo para si, para o lazer, para a cultura, para a própria educação. Parece-me natural que isso seja suficiente para ruir a família e minar a vida de qualquer pessoa. Quem aguenta viver pra trabalhar ao invés de trabalhar pra viver? Em palavras menos sutis: viramos burros de carga, a trabalho de outros, sem independência e sem tempo para nossa própria vida…
…para enriquecer outras pessoas. Embora mascarassem isso como “necessidades de produção do país”.
E a mulher nisso tudo?
Vá lá que o marketing capitalista foi bom o suficiente para conseguir convencer a todos de uma tríplice aliança: progressão individual = independência financeira = trabalho assalariado. Se já estava ruim para o homem, antigo provedor da família, o que isto significava pra mulher?
A mulher era essencialmente uma doméstica. Esposa, mãe e dona de casa. Isso era pouco? Diga isso àquelas que tinham que cuidar dos filhos, lavar as roupas, cuidar da casa e fazer tudo isso sem ter tempo para seu próprio gosto/lazer e nem sequer ter voz para falar o que quer que fosse dentro de casa. É uma vida de merda, convenhamos. E se arrasta até hoje, infelizmente. Aí vem a bela tríplice aliança, propaganda master do capitalismo, para salvar nossas vidas: mulher, você agora é independente. Pode trabalhar para não depender de seu marido e ter sua autonomia financeira.
O que poderia dar errado? Nem preciso escrever, alguém já falou sobre isso:
A mulher, a mãe operária, sua sangue para cumprir três tarefas ao mesmo tempo: trabalhar durante oito horas num estabelecimento, o mesmo que seu marido; depois, ocupar-se da casa e, finalmente, tratar dos filhos. O capitalismo pôs nos ombros da mulher uma carga que a esmaga; fez dela uma assalariada, sem ter diminuído o seu trabalho de dona de casa e de mãe. Assim, a mulher dobra-se sob o triplo peso insuportável, que lhe arranca amiúde um grito de dor e que, às vezes, também lhe faz verter lágrimas. O afã foi sempre a sorte da mulher, mas nunca houve sorte de mulher mais terrível e desesperada que a de milhões de operárias sob o julgo capitalista durante o florescimento da grande indústria… (Alexandra Kollontai, 1982).
Difíceis tempos: pausa para um relato
Minha mãe começou a trabalhar com 9 anos como empregada na casa de outras pessoas. Nove anos. Ia para a escola descalça, com as poucas roupas que tinha, e me conta que ainda hoje lembra das próprias mãos roxas e rijas de frio, pois também não tinha luva. Ela morava no interior do Paraná. Que infância se pode ter quando começa a trabalhar aos nove anos?
Me doeu TANTO ouvir minha mãe dizer, certa vez: “Quando lembro da minha infância, eu fico tão triste. Tinha tantos sonhos, tantas coisas que eu queria ser, que eu gostava e não podia fazer nada. Não tinha tempo pra nada, não tinha tempo nem pra ser criança. Era só trabalhar, trabalhar, só falavam disso desde que a gente [os irmãos todos] era pequenininho. Que vida, meu Deus…”.
O dinheiro ficava em casa para ajudar minha avó a comprar as provisões. Com quinze anos, ainda empregada, mudou de cidade para trabalhar em outra casa. Foi forçada a casar, teve a primeira filha sozinha, na roça, com 16 anos. Quase morreu durante o parto, pois tinha uma péssima alimentação e não era raro passar fome. Enquanto meu pai trabalhava como massagista de futebol, minha mãe cuidava da casa, da filha, trabalhava e ainda lavava as roupas de todo o time para o qual meu pai trabalhava. Lavou durante 3 anos, com salário atrasado (na verdade, nunca recebeu) até que o time faliu e desapareceu. A segunda filha filha veio nesse meio tempo. Parida sozinha, em casa, pois meu pai estava fora trabalhando.
Pra ajudar o quadro maravilhoso, algo muito comum em muitas famílias, meu pai se tornou alcoólatra. Acaba sendo a válvula de escape de quem tem uma vida desse nível – também vemos atualmente.
Não preciso me prolongar, essa história é repetitiva. Foi uma vida difícil e sofrida. Essa era a vida não só da minha mãe, mas de muitas mulheres daquela época: casa, filhos, trabalho, falta de tempo para si, para diversão, para alienar-se do sofrimento, e ainda tinha suas obrigações de esposa. Sim, obrigações. Acabava sendo isso mesmo, concordam?
Voltemos ao texto, só para concluir.
Por que o problema central é o capitalismo e não a modernização em si?
A culpa não pode jamais ser jogada puramente em cima da modernização, pois ela não foi um meio, mas sim um fim. O problema foi focar a produção, a riqueza, o DINHEIRO em detrimento das próprias PESSOAS.
Não é um sistema minimamente humano, mas puramente materialista e exploratório. E a modernização não é um sistema, Mr. Obvious.
O capitalismo centralizou a vida de todos para o consumo e a produção/acúmulo de riquezas (a qualquer custo) e tirou-lhes o tempo para fazer o que quer que fosse fora isso. Trabalham muito, ganham pouco, gastam mais do que recebem (por incentivo midiático e alienação cultural impositiva) e não conseguem ter o menor a cultura, lazer e educação. Era o mínimo de se esperar.
Não é sem razão que haja tanto descontentamento, mas de tal forma esse modus operandi foi instaurado, estipulado e imposto que muitos se apegam a ele não veem como poderia ser diferente. Aprenderam que era justo e normal como as coisas corriam. Por que digo isso?
Uma luta recente que vi (e que venceu, felizmente!) foi a de amigos sindicalistas do setor judicial em greve por 200 dias (olha isso!) por melhores condições. Melhoria salarial e redução da jornada de trabalho – alguns, inclusive entre os próprios trabalhadores do setor – acharam isso absurdo. “Como assim quer ganhar mais e trabalhar menos?”, pensam e dizem abismados como se estivéssemos falando de roubar alguém ou deixá-lo à míngua. Como diria Rosa Luxemburgo: não enxergam as correntes que os prendem. É como gostar de ser escravo e ainda achar legítimo.
Consequências
Os resultados são claros, vemos se repetirem no nosso dia a dia, embora nem todos reconheçam seu verdadeiro caráter e muitos julguem de forma muito superficial. A desestrutura familiar, a saúde física e mental das pessoas, o aumento do crime, a mendicância – tudo isso está relacionado ao quadro capitalista daquela maravilhosa tríplice aliança.
Há os que se perdem nas ruas, no crime e/ou nas drogas por falta do exemplo familiar, mas que exemplo ter se ninguém na família tem tempo para ser gente/pai/mãe, pois todo o tempo é ocupado sendo empregado? Há aqueles que não podem estudar, não podem investir na própria educação e cultura, porque precisam desde sempre se matarem de trabalhar para conseguir sobreviver. Há aqueles que entram para o crime pra conseguir aquilo que lhes convenceram ser essencial, mas que não lhes dão oportunidades de ter também: riqueza (assim, querendo ou não, o roubo e o tráfico são consequências de um incentivo ao consumismo)…
Entre esses, há muitos outros exemplos. Ao fim, entretanto, estamos todos no mesmo barco: deixando a vida de lado, que é que realmente deveria importar, para dedicarmos a esta imagem que nos venderam, reforçando a base da pirâmide capitalista. Aceitamos a tríplice aliança, convencendo de que, realmente, progressão individual = independência financeira = trabalho assalariado. A vida é transformada em só mais um produto de consumo.
