Que o Brasil tenha graves problemas no setor da educação não é nenhuma novidade. Que o ENEM seja um processo seletivo incoerente com a realidade de ensino brasileira também é do jornal de ontem. Mas qual a relação entre o ensino básico, o ENEM e o ensino superior? Como assim isso não é só um problema do ensino médio, a etapa que antecede o exame? Vamos por partes.
Na verdade, a representação mais evidente dessa crise (e, por isso, alvo de muita polêmica) é exatamente esse processo seletivo adotado pela maioria das universidades brasileiras, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). E o que está em jogo nessa crise? Primeiro, a influência das mazelas sociais já conhecidas da sociedade brasileira – fome, violência, desigualdade social e econômica, oportunidades destoantes entre um e outro que competirão “em pé de igualdade”. Segundo, um currículo atrasado no ensino básico, inclusive nas escolas particulares, fato que acarreta reflexos absurdos, dos quais falaremos mais tarde. Terceiro, a realidade de um ensino superior que dialoga muito pouco (ou quase nada) com o ensino básico.
Nesse quadro, a péssima idéia foi a adoção de um processo seletivo que parece tentar se modernizar, mas que também faz pouco diálogo com o ensino básico, já que exerce pouca ou nenhuma pressão sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais. Estes, por sua vez, pregam um discurso lindo quanto à relação professor-aluno, mas esse discurso não só vai de encontro às dificuldades enfrentadas na sala de aulacomo também às próprias exigências dos Parâmetros em termos de conteúdo. É esse problema que trazemos a partir do seguinte trecho, retirado dos PCN de 3º e 4º ciclos de 1998:
Ao professor cabe planejar, implementar e dirigir as atividades didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do aluno, procurando garantir aprendizagem efetiva. Cabe também assumir o papel de informante e de interlocutor privilegiado, que tematiza aspectos prioritários em função das necessidades dos alunos e de suas possibilidades de aprendizagem.
O primeiro trecho grifado apresenta dois grandes problemas impregnados no ensino básico: o primeiro é a ideia de que o professor é um “provocador”, aquele que incita a reflexão e o esforço de pensamento. Lindo, não? Também achamos que isso seria maravilhoso, não fosse o casode o “senhor professor provocador” chegar à sala de aula e encontrar um modelo de escola conteudista com um currículo defasado e desinteressante. É necessário não apenas trabalhar todos os conteúdos previstos no programa (ou a maior parte deles), mas também fazer aquilo tudo parecer interessante e útil para os alunos, quando, na verdade, quase nunca é assim.
O segundo trecho grifado traz outro problema, que se refere justamente ao currículo defasado que não dialoga com as necessidades da sociedade nem considera as diferentes possibilidades e tempos de aprendizagem de cada aluno. Se a escola atual nem considera esses fatores, muito menos os prioriza. E, ainda que um ou outro professor tente fazer a diferença, sempre há um currículo inchado e engessado, com temas distantes da realidade dos alunos e, muitas vezes, abordando conceitos cientificamente desatualizados.
Mas o que o ensino básico tem a ver com o ENEM?
Creio que antes dessa pergunta, devemos nos perguntar: pra quê serve a escola? Aí vem a resposta pronta e genérica: para formar cidadãos e dar conhecimento. E, depois disso, pra que serve a faculdade? Para formar profissionais que colaborem com seu conhecimento para a construção/progressão da sociedade. Uma mão lava a outra e as duas juntas lavam o rosto, mas…
O ensino básico é o pilar de tudo. Um ensino básico fraco se transforma num ensino médio pobre e um ensino superior sofrível. Como diz o próprio nome, é a base. São conceitos que parecem muito simples para quem já ultrapassou, mas que são pontos muito complexos e espantosamente novos para aqueles seres pequenos, que ainda não sabem por que raios estão freqüentando a escola e que aquilo afetará completamente as suas vidas. ali vão adquirir as primeiras noções de linguagem (uau, isso aqui no papel é um desenho do que eu estou falando!), comunicação, leitura, escrita, contato com os números, com a terra, com outras pessoas e outros contextos de vivência. É o mínimo que alguém precisa saber para prosseguir na sua formação, ou seja: deve ser impecável, tem que ser de boa qualidade.
Infelizmente, não recebe a devida importância e investimento. Vamos deixar mais claro:existe algo chamado Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA, em inglês) realizado pela OCDE/UNESCO, que mede a capacidade que jovens de 15 anos tem em usarem seus conhecimentos para enfrentarem desafios da vida real. No ranking internacional de 2003, por exemplo, o Brasil ficou em último lugar. Já em 2009, quando 65 países participaram da avaliação, o Brasil ficou na 53ª colocação. Houve evolução, mas a diferença ainda é grande em relação à maioria dos outros países participantes.
O resultado do PISA é dividido em cinco níveis, sendo que o primeiro é o mais fácil, de ações mais óbvias, no qual é cobrada do estudante a identificação de respostas que estão no próprio enunciado das questões. O último e mais difícil é o nível 5, no qual é exigido do aluno a formulação de respostas a partir de reflexões e argumentações. Quase metade (49,2%) dos alunos brasileiros não alcança o nível 2 de desempenho na avaliação. Em 2009, o Brasil não teve nenhum aluno no nível 5.
Esse é o produto do modelo de escola conteudista. Ao mesmo tempo em que o professor deve estimular o aluno a refletir, argumentar, uma coisa linda à moda de Platão e Grécia antiga, ele deve fazer isso enchendo o caderno de conteúdos do livro – que tem de ser dado por completo naquele ano, viu? – e o aluno tem que engolir, tem que saber, tem que decorar…
Tudo isso é uma realidade generalizada nas escolas brasileiras, masainda existe um agravante nas escolas públicas: o uso das estatísticas como instrumentos de propaganda política. Como a educação pública é responsabilidade do governo (em suas diferentes esferas), é claro que seria muito interessante “mostrar serviço”, ainda que isso nem sempre esteja, de fato, acontecendo. Os números de alunos aprovados e com “boas” notas no IDEB, em tese, revelariam a melhoria na qualidade da educação e, portanto, no aprendizado dos alunos. Além disso, esses números favoráveis servem como “prestação de contas” para o dinheiro que é investido no setor. Daí talvez a “recomendação” do MEC, valendo desde 2001, para não reprovar no ensino básico (claro, uma recomendação que acaba por coagir professores já que, mesmo não sendo obrigatória, vem de um órgão superior na hierarquia das instituições).
Assim, mesmo que os alunos não tenham aprendido (e nem mesmo decorado) 50% do assunto do ano, que é o mínimo esperado para aprovação na rede pública, eles podem ingressar na série seguinte. Todos são prejudicados nesse processo: a escola, pois tem que lidar com alunos desinteressados e certos de que serão aprovados ainda que não estudem; o próprio aluno, pois não possui os conhecimentos que servem de base para o aprendizado do assunto do ano seguinte e acaba ficando desmotivado por achar que os conteúdos da escola nunca vão entrar na sua cabeça; o professor, pois entra em uma sala em que a maior parte dos alunos como o que acabei de descrever; a sociedade, pois esses indivíduos que essa escola forma tem pouquíssimas chances de conseguirem boas notas no ENEM e, portanto, de entrar na universidade, sendo submetidos, então, a empregos de menor valorização (o que reforça as mazelas sociais citadas no início desse texto enorme); o ensino superior, pois, geralmente, os que conseguem ingressar nele acabam tendo dificuldades em relação ao conteúdo que encontram, sendo que esse conteúdo poderia ser “mais avançado” se a base de conhecimentos tivesse sido bem consolidada pelo ensino básico.
Aqui resta a pergunta: foi o ensino básico eficiente? Foi o ensino médio suficiente? Frente a essa combinação, o exame é justo e coerente com a realidade?
Não bastasse esse conjunto desastroso, temos que pensar em outro ponto. Nosso país é enorme, com regiões mais desenvolvidas e outras mais atrasadas, principalmente quando o assunto é investimento em educação. Quando aplicam o exame a nível nacional partindo da premissa que “o currículo é o mesmo para todos”, tornam a avaliação ainda mais injusta. Como competirão, “igualmente”, o aluno da cidade interiorana e o aluno da metrópole? Como competirá, “igualmente”, o aluno de São Paulo e o aluno do sertão nordestino, por exemplo?
Isso cria situações de marginalidade para os alunos deixados de fora por um sistema ineficiente de avaliação e não há nenhuma preocupação do poder público em melhorar o quadro da educação. Para esse caso, há aqueles que apontam a regionalização como a resolução do problema: que a prova seja feita apenas para pessoas daquele estado, para que não tenham que competir injustamente com alunos de fora que tiveram mais condições de estudo e, assim, “percam a vaga”. A verdade é que isso não solucionaria a questão, apenas nivelaria por baixo, dando continuidade ao ciclo de formações precárias. Ensino básico fraco, ensino médio pobre, ensino superior sofrível. As políticas de aprovação para propaganda eleitoral continuariam iguais, a qualidade não subiria, ainda que os números tentassem mascarar essa realidade.
Os fatos expostos somente comprovam que o problema está na base da pirâmide, no ensino básico que não dialoga com a sociedade, nem com o ensino superior, mantendo uma tradição que não se adequa ao contexto sócio-histórico atual. A (tentativa de) reformulação do ENEM, que deveria ser acompanhada pela escola, pode ser uma alternativa viável, mas, talvez, muito imprecisa e demorada. Assim, em vez da urgência de transformação do ENEM, reflete-se antes a necessidade de uma profunda reforma curricular, estrutural, orçamentária e até ideológica das escolas, que só poderá ter sucesso se a articulação entre os níveis básico e superior de ensino se articularem de forma precisa e coesa, contando com a participação massiva da sociedade. Essa articulação, sim, teria como consequência inevitável a reformulação do ENEM, para que o sistema de ingresso no ensino superior fosse, de fato, justo, democrático e coerente.
* Texto em parceria com Sheltom D. Aragão, mestrando de linguística da UFBA e professor.
Fontes
BRASIL (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental: Introdução. Brasília/DF: MEC/SEF
PISA: desempenho do Brasil piora em leitura e “empaca” em ciências
Educação científica: cenário de crise
Ensino médio no Brasil está em crise, diz especialista do IDEB
