Feministas sim, mas nem por tudo, nem por todas. Incompletas.
Não quero criar encrenca nem criticar da boca pra fora: se faço esse texto é porque realmente acredito que tem algo errado entre xs feministas e é preciso consertar antes que sejam criadas lacunas no movimento. A luta está incompleta e radicalmente fragmentada.
Baseio tudo que aqui escrevo nas observações que tenho feito entre os grupos do segmento. Vou me explicar.
Uma por todas, mas nem todas por uma
As pautas do feminismo são incontáveis, seguindo todas a mesma linha e o mesmo objetivo: a emancipação da mulher / a igualdade de gênero conquistada através da aquisição dos direitos que nos faltam, foram tomados ou negligenciados. Aí está incluso a luta contra todo tipo de machismo, os direitos trabalhistas, os direitos individuais, de liberdade, etc, etc, etc.
Uma das pautas de luta muito conhecidas – e que causa comichão em tanta gente – é o aborto. O direito à vida, ao corpo e à escolha. Ótima pauta, por sinal. Mas tenho notado um comportamento estranho que parece estar surgindo (e se agravando) a partir desse ponto. É mais ou menos assim:
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Uma feminista se revolta com os pensamentos taxativos da sociedade que relacionam a mulher diretamente com a vontade de ser mãe – como se fosse algo obrigatório, tornan quase numa aberração aquelas mulheres que não sentem o mesmo (“como assim você não quer ser mãe?”, “isso passa depois de certa idade”, “você é louca, a mulher nasceu pra isso”).
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Tal feminista toma parte na luta contra esse padrão, passando a militar contra essa ideia de obrigatoriedade procriativa e a favor do direito de escolha de ser mãe ou não.
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Cada vez mais indignada com comentários e fatos recorrentes que reforçam aquilo contra o que luta, a feminista absorve essa frustração e passa a repudiar radicalmente a ideia de ser mãe. Diz explicitamente que não quer e não vai ser.
Veja bem, não estou falando de mulheres que nunca se reconheceram na figura materna, que nunca se viram ou desejaram mães. Estou me referindo às mulheres que não tinham qualquer objeção com a questão da maternidade (eram favoráveis ou indiferentes), mas passaram a repudiá-la depois de “passar raiva” com seu objeto de luta.
É bizarro, mas é o que de fato parece estar acontecendo. Fossem poucos os casos e eu nem comentaria.
Agora você me pergunta: por que você se importa com isso?
Feminista: você está esquecendo de uma parcela da luta!
Não, eu não acho que, pelo exposto acima, o feminismo vá fazer com que as mulheres fiquem todas revoltadas, se recusem a ter filhos e a humanidade entre em extinção. Não sou nenhum Malafaia da vida. A questão é: o feminismo existe para a mulher. Toda mulher. Toda a mulher. Todas as mulheres. Toda sua vivência, não só até certo ponto ou só na teoria. E o fato é que existem lutas a ser travadas pelo feminismo que estão assentadas nas fases da maternidade (gestação, pós-parto, vivência da mulher como mãe).
Eu não preciso ser uma feminista negra para lutar em prol das mulheres negras. Não preciso ter sido violentada para lutar contra as violências de gênero. E a mulher feminista não precisa estar gestante ou ser mãe para lutar pelas pautas feministas que abarcam esse ciclo. Ou precisa? Se o feminismo não abarca essas mulheres, então não abarca todas as mulheres. A luta está incompleta.
Vejo muitas feministas lutando pelo aborto. Não vejo o mesmo número nem a mesma empolgação lutando pela humanização do parto, por exemplo – aliás, vejo minorias que estão envolvidas nesse assunto lutarem por isso, sem o apoio das outras. Vejo muitas lutando contra o estupro e a violência doméstica, mas não vejo o mesmo número, o mesmo apoio e a mesma motivação lutando contra as violências obstétricas que efetivamente existem, que traumatizam e que matam em todo o mundo (com esse sistema de saúde que temos no nosso país maravilhoso, então, nem preciso comentar!).
É aqui que eu pergunto: mulheres feministas, vocês desconhecem a causa ou não procuram saber? Vocês se omitem ou lutam só por aquilo que vem antes? Deixarão para lutar por essas mulheres, grávidas e mães, quando (e se) estiverem no lugar delas? Essa discussão é necessária! Absolutamente necessária. É um tipo de violência, é proveniente do machismo e de uma estrutura capitalista e coorporativista existente na “máfia” médica. Isso mata milhares de mulheres por ano, indiscriminadamente. Mata, humilha e traumatiza como é o aborto que se faz diferenciado para mulheres pobres e mulheres ricas. Mata, humilha e traumatiza como os tabus machistas contra os quais lutamos.
A mulher feminista que restringe sua luta ao aborto, aos direitos trabalhistas, ao racismo e à transfobia, está limitando a sua militância e está, sim, sendo omissa para com as outras. São falhas que existem entre as ativistas e que só não criam lacunas no movimento porque ainda existem aquelas que o integrarão posteriormente, quando fizerem parte desse pequeno grupo de mães e grávidas confrontadas pela péssima qualidade do serviço público de saúde e a cultura machista e capitalista que nos transforma em meros objetos interferindo diretamente numa fase belíssima das vidas das mulheres, que é a gestação, e num momento decisivo de suas vidas (e de outrém), que é o parto.
Convido, pois, as feministas a se inteirarem desse assunto e serem solícitas às outras mulheres, às outras companheiras de luta que têm sido marginalizadas dentro de tantas pautas que não são mais nem menos importantes que esta aqui exposta.
Todo direito às mulheres que não desejam a maternidade, mas que não limitem nem sejam omissas à luta: o feminismo é a luta pela libertação de todas as mulheres, não por uma parcela delas.
