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Narcotráfico, crime e poder

Ontem foi publicado aqui no blog o artigo do Rui Miguel, a meu convite, sobre narcotráfico e estruturas de poder. Foi a primeira parte de uma série que terá como título “Brasil em Movimento”. Estou fazendo essa nova publicação, então, pra comentar um pouco mais sobre o que ele disse anteriormente. Vamos falar de narcotráfico?

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Narcotráfico é o termo usado para definir o tráfico de qualquer elemento entorpecente ilícito, as “drogas”.

Em relação à medidas preventivas, punitivas e definições de crime ao se tratar desse assunto, no Brasil temos em vigor a lei n. 11.343 de 2006, conhecida como “Lei de Drogas”, que aumentou o rigor do judiciário e da polícia no “combate ao tráfico”. Essa lei se trata de uma postura proibicionista perante o assunto de guerra às drogas que nada mais fez além de aumentar as prisões – mas claro que isso se limita ao caso dos pequenos traficantes e não dos grandes chefes do problema. Quer ver? Vamos aos dados.

De acordo com números do Depen, enquanto a população carcerária como um todo aumentou 1,7 vez (de 294 mil para 514 mil) entre os anos de 2005 e 2011, a quantidade de presos por tráfico cresceu quase quatro vezes (de 32 mil para 125 mil) [fonte aqui]. Já nos últimos dois anos, as prisões por tráfico subiram em 30%. E segundo o juiz Luís Lanfredi, 90% dos presos são pequenos traficantes, sem antecedentes criminais e vínculos com o crime organizado. Em 2010, os presídios brasileiros tinham 106.491 pessoas fisgadas na guerra contra o narcotráfico. Dois anos depois, esse número pulou para 138.198 (fonte aqui). A maioria dos prisioneiros por tráfico são homens, mas qual é o perfil desses detentos? A maioria tem até 29 anos e não completou o ensino fundamental (fonte aqui).

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Isso somente evidencia minha acusação: os mais afetados, culpabilizados e criminalizados por esse sistema e sua guerra às drogas são os mais pobres. Pergunte-se: quantas pessoas de classe média ou alta você vê, atualmente, sem tirar o ensino fundamental? Todas têm acesso a educação. Esse perfil que abandona a escola tão cedo é mais comumente visto nas famílias de classe mais baixa; são pessoas que não podem “perder tempo” com a escola ou investir na educação de si mesmas, pois precisam desse tempo precioso para ajudar financeiramente em casa.

Aqui entramos num tópico muito delicado da questão que Rui Miguel também mencionou em seu artigo: todos os fatores sociais e econômicos trabalham em conjunto para a realização e sucesso do indivíduo de classe baixa no narcotráfico. Pensa comigo no próximo tópico.

O nascimento do pequeno traficante e a perpetuação do sistema

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Quero comentar um evento que aconteceu comigo para ilustrar essa questão. Eu lecionava inglês num instituto particular que atendia adolescentes (14 a 18 anos) de escolas públicas. Perfil dos meus alunos: esmagadora maioria de classe baixa, estudantes de escolas problemáticas, vindos de bairros complicados e muitos com problemas familiares bastante claros.

As brincadeiras na sala estampavam essa realidade social: “me respeita que eu sou do Bairro X”, dizia um; “ihh, só chamo a gangue do Bairro Y pra você então e quero ver”, respondia o outro; “quem for do Bairro Z então comanda a sala”, completava um terceiro. Noções de periculosidade e disputas muito comuns em bairros problemáticos e que mostram o dia-a-dia em que crescem e se espelham esses adolescentes.

Um dia fui surpreendida pela fala de um aluno, que fez o seguinte comentário sem escrúpulo ou embaraço algum (não o coagi, sempre discuti de tudo com meus alunos, independente do que fosse o tema): “Professora, você sabe quanto tá o quilo da maconha? Tá xxxxx reais (não recordo o valor). O povo fala e fala que não compensa, mas olha o meu irmão: todo dia de carro novo, só roupa de grife, só moto zerada. Só anda no estilo, professora.”.

Pronto, mostramos aqui o que é o “poder do narcotráfico que todos desejamos, mas que sabemos ser injusto para outras pessoas”, que Rui comentou. Vivendo num sistema que estimula a competição e coloca, acima de tudo, status, posses e poder como sinônimo direto e perfeito de “bem-sucedido”, pessoas que não têm as mesmas oportunidades que alguém da classe média ou alta e convivem diariamente com esses exemplos, direcionados para isso e sem expectativa de mudança… aceitam e processam esse modelo como padrão de “bem sucedido”. Aí está o funk ostentação para nos lembrar disso todos os dias, não é mesmo? Image may be NSFW.
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O assunto de “guerra às drogas” envolve muito mais que só o pequeno traficante e famílias pobres: envolve um comércio gigantesco, indústrias bélicas, tráfico internacional e sistemas inteiros, como o penitenciário, político e militar. Milhares de pessoas morrem todo ano no Brasil por conta dessa suposta “guerra”, mas o sistema se mantém. Pode apostar que a maioria dos mortos e presos são pobres, mas e os grandes peixes que nunca somem? Se a guerra existe e é tão fortemente combatida e travada, por que o problema nunca acaba? Existe uma intenção, toda uma estrutura por trás disso, para que esse sistema se perpetue. Porque é lucrativo para esse ou aquele elemento. Vejamos.

Quando falamos em drogas ou guerra às drogas, todos tendem a direcionar seus pensamentos automaticamente para locais como as favelas ou a cracolândia, por exemplo. Lugares devastados por problemas de drogadição e violência, sem dúvida. Mas pense comigo: se na favela e na cracolândia não tem plantação de coca (exemplo) nem se fabricam armas, quem financia e mantém a continuidade desse ciclo?

Se tudo é por lucro e poder, quem lucra com isso?

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guerra as drogas acabar policia bancos traficantes

Achei um estudo tão bom sobre isso, que invés de me debruçar nesse assunto, vou citar algumas partes. É uma Análise Social feita por Luís Fernando Moreira, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Vamos começar pelos custos da guerra às drogas:

É necessário ter em mente que o uso de drogas, lícitas ou não, pode ser considerado uma necessidade humana; o seu uso é milenar e está associado a eventos ritualísticos, aplicações médicas e recreação (Lima et al., 2011; ­Carneiro, 2002). De acordo com Lima et al. (2011) as drogas também são usadas para estabelecer diferenças sociais. Seja qual for a finalidade do uso, o facto de um indivíduo consumir drogas não faz dele necessariamente um criminoso que, por conta disso, deva ser preso.

O custo social mais facilmente identificável com as drogas é o gasto com a saúde pública; há um sem-número de doenças causadas ou associadas ao uso de drogas, lícitas ou não. Os custos envolvidos não são em absoluto desprezíveis. Porém, há outros aspetos interessantes e dignos de atenção no que concerne a custos que são igualmente suportados pelo conjunto da sociedade. Por exemplo, há os custos diretamente associados ao aparato bélico necessário para travar uma guerra contra as drogas; mas há outros relacionados com fatores indiretos como: 1) manutenção de uma população prisional crescente; 2) corrupção do judiciário e de outras instituições; 3) lavagem de dinheiro; 4) escalada da violência e 5) tráfico de armas ligado ao tráfico de drogas. (…)

Em 2003, no Brasil, o SUS estimava um gasto de no mínimo US$ 35 milhões por ano em casos relacionados com drogas. O álcool representava cerca de 84,5% dos internamentos hospitalares decorrentes do uso de drogas; no mesmo ano o SENAD tinha orçamento US$ 2 milhões para a redução da procura de drogas (ONU, 2005). O que chama a atenção é que as drogas ilícitas parecem um problema menor, ou pelo menos, que deveriam figurar em segundo plano no que diz respeito ao tamanho do orçamento público para combatê-las. (…)

Dados do Estado de São Paulo para o ano 2000 apontavam que 25,4% dos presos em regime fechado eram condenados por tráfico ou uso de estupefacientes (SAP, 2002). Cerca de 25% das prisões no Brasil ocorrem por tráfico ou uso de drogas; um preso no sistema estadual custa aproximadamente R$ 1 700,00 por mês e no sistema federal não menos de R$ 7 000,00 por mês, conforme dados fornecidos pelo presidente do Conselho Nacional de Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (CONSEJ) ao jornal O Globo em notícia publicada em 20-11-2011 (Duarte e Benevides, 2012). Supondo que 25% dos presos estivessem no sistema federal, uma eventual legalização implicaria uma poupança média da ordem de R$ 4,7 biliões por ano só no sistema prisional. (…)

O tráfico de armas movimenta US$ 290 biliões por ano, o tráfico de drogas outros US$ 400 biliões. Estima-se que cerca de US$ 500 biliões em dinheiro sujo circulem pela economia mundial todos os anos (Tavares, 2006; COAF, 2000; Maierovitch, 2003). É interessante reparar que o dinheiro sujo é lavado, ou como comenta Van der Veen (2003, p. 375) “[…] a mais bela ironia, é que uma vez lavado, isto é, provido com a aparência de ter origem legal, alguém pagou impostos sobre esse dinheiro a algum governo. Isto é, dinheiro limpo é dinheiro sobre o qual foram pagos impostos. (…)

Para Zaluar (2000), as políticas e técnicas adotadas pelo governo brasileiro resultam em escassez, o que eleva o preço das drogas e afeta adversamente a qualidade; isso faz com que mais pessoas desejem suportar o risco da atividade ilegal, em todos os níveis, por conta da possibilidade de lucros crescentes organizando assim as suas atividades de modo a minimizar os riscos e maximizar os lucros. O potencial de lucros do mercado das drogas também elevaria o nível de corrupção das instituições estatais; uma vez que o crime organizado perpassa todas as camadas sociais e tem ramificações com negócios legais e formais, ele não poderia existir sem o suporte institucional das agências ­estatais. (…)

Enfim, concluindo com Luís Fernando:

(…) Muito do que foi apresentado parece colocar entre os atores sociais mais interessados em manter as drogas na ilegalidade os defensores do seu combate truculento e os traficantes. Os primeiros beneficiam do status que o grande volume de recursos públicos que lhes é destinado produz e dos inúmeros mecanismos de corrupção criados através dessa abordagem; outros, que produzem ou comercializam armamentos legal e ilegalmente, beneficiam com o clima de insegurança ­generalizada produzida pela guerra contra as drogas. Os traficantes, por seu turno, obtêm retornos extremamente elevados em função do prêmio de risco característico de uma atividade ilegal. Esses grupos teriam, em teoria, incentivos para manter a discussão a respeito de políticas alternativas para lidar com as drogas bem afastada da agenda política.

Finalizando, a questão das drogas não é uma questão nacional, mas global e deve implicar políticas globais. A sociedade mundial arca há muito com os custos sociais de uma política cujos resultados provam ser totalmente obliterados. Enquanto os estabelecimentos prisionais pelo mundo afora transbordam de viciados pobres e pequenos traficantes, o preço das drogas declina, a oferta e o consumo aumentam e o orçamento para combater o tráfico de modo truculento multiplica-se a expensas do contribuinte. Procurar alternativas com menor custo para os cidadãos deveria ser um objetivo de qualquer governo.


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