Tenho visto pipocar nas redes sociais a campanha “Diga não ao aborto”, com fotos das moças grávidas ou com seus bebês no colo.
A campanha puxa pelo quesito comovente, com fotos lindas e fofas que tocam as pessoas, evocando aquelas imagens românticas sobre a gravidez, a maternidade, a vida nova. Enfim, evoca a ideia de que todas estão muito felizes com a gravidez, que tudo é lindo e por isso todas dizem “não ao aborto”. Assim, assumimos que existe um outro lado: o lado “pró-aborto”.
Esse lado não existe. Não existem pessoas “pró-aborto”, porque o aborto é uma situação complexa, difícil, traumática e absolutamente violenta para o corpo feminino.
O trauma psicológico, de lidar com a própria moral sobre aquela possível nova vida ou a moral espiritual, que é ainda mais pesada para mulheres cristãs, lidar com os julgamentos das outras pessoas, ser incriminada, xingada, odiada gratuitamente, mal tratada pelos próprios profissionais da saúde mesmo em caso de aborto espontâneo.
Não bastasse este trauma, que por si só é bastante violento, ainda há outro, talvez pior. O trauma físico, que deixa marcas, que tira vidas. Seja pelas mudanças que o corpo sofre, pois a placenta tem que sair, o feto que tem que sair, o sangue que se perde, que é uma hemorragia, a curetagem feita pra limpar o corpo depois; às vezes são ainda piores, pelas violências nas clínicas onde são feitos os abortos, usando equipamentos invasivos, não higienizados, verdadeiros açougues.
Enfim, tudo isso influencia na decisão da mulher gestante, tudo isso pesa e tudo isso acontece todos os dias, milhares de vezes ao ano. Ninguém é a favor disso.
“Quando eu cheguei lá, eu fui recebida por um médico vestido de açougueiro, com um avental branco, todo ensanguentado, e com instrumentos claramente artesanais, rudimentares. […] Eu comecei a ter uma crise de vômito, enquanto o médico me tortura dizendo que, se eu não tivesse procurado ele, eu não estaria vivendo aquilo”. – Depoimento no curta Clandestinas
Ninguém é a favor do trauma psicológico, ninguém é a favor do trauma físico, da violência sofrida, ninguém é a favor de assassinatos, ninguém é a favor da morte de milhares de mulheres todos os anos. Ninguém defende o aborto como método contraceptivo, a saída de toda gravidez; ninguém acha que aborto é uma coisa boa ou a melhor alternativa. Por isso, ninguém é a favor do aborto.
A questão, então, não é o aborto em si, mas sim as consequências.
Hoje, o assunto é tratado no âmbito criminal, quando devia ser tratado no âmbito de direitos humanos e saúde pública porque é a 5ª causa de morte materna no Brasil. Discutir a descriminalização e regulamentação do aborto é discutir a redução de mortes das mulheres e a diminuição do número de abortos, porque a existência de fiscalização e lei sobre isso possibilitaria ao Estado acompanhar, prestar assistência psicológica/social e orientar a gestante.
A lei, como está, apenas serve para fechar os olhos do Estado, ainda que o aborto continue acontecendo.
Jandira, que estava grávida de quase quatro meses, saiu de sua casa, no bairro de Campo Grande, na zona Oeste do Rio de Janeiro, no dia 26 de agosto, acompanhada de seu ex-marido, para se submeter a um aborto clandestino. No dia seguinte, seu corpo, carbonizado, foi encontrado no interior de um carro, não muito longe de sua casa, em Guaratiba. As investigações preliminares concluíram que Jandira havia passado por um procedimento de aborto ilegal que resultou em sua morte. Os responsáveis pela intervenção cirúrgica arremataram a mórbida tarefa cortando as mãos e os pés da vítima, arrancando a arcada dentária e ateando fogo, para dificultar a identificação do corpo. No entanto, não conseguiram. – fonte
Segundo pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), da Universidade de Brasília (UnB), mais de uma em cada cinco mulheres alfabetizadas que possuem entre 18 e 39 anos já praticaram pelo menos um aborto ao longo da vida. Cerca de metade delas teve que ser internada por conta de complicações, como perfuração do útero.
No documento Aborto e Saúde Pública no Brasil, de 2009, o Ministério da Saúde destacou estimativa de que 1.054.242 abortos foram induzidos só em 2005. Já o Centro Feminista de Estudo e Assessoria (Cfemea) aponta que cerca de 1 milhão de brasileiras submetem-se a abortos clandestinos todos os anos.
Ao contrário do que se pensa, a maioria das mulheres que abortam não são adolescentes em sua primeira gravidez, jovens desajuizadas que querem se livrar da responsabilidade.
Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Brasília, em 2010, 81% das mulheres que abortam têm filhos, 88% têm religião e 64% delas são casadas. Isso por si só quebra muitos discursos e paradigmas, mas é preciso citar o fator econômico: 23% recebe apenas até 1 (um) salário mínimo, 31% recebe de 1 a 2 salários e 35% recebe de 2 a 5 salários mínimos.
A 60 quilômetros de Campo Grande, na cidade de Niterói, no dia 21 de setembro, o corpo de Elizângela Barbosa, mãe de três filhos, foi encontrado em uma vala. A mulher tinha se submetido, um dia antes, a um aborto clandestino pelo qual pagou 3.500 reais. A autópsia do cadáver encontrou um tubo de plástico na interior do útero, além de perfurações neste órgão e no intestino. – fonte
Aqui entram as nuances: mesmo proibido, o aborto é praticado – pelas inúmeras razões.
Sem legislação e sem intervenção do poder público, o aborto seguro torna-se um privilégio dos ricos, pois podem pagar pelas clínicas que chegam a cobrar próximo de 5 mil reais por procedimento.
Já as mulheres pobres, de baixa renda, procuram métodos inseguros e clínicas clandestinas, os açougues da vida, que provocam a morte e morbidades, gerando responsabilidade social e financeira para o Estado (nota da OMS).
A OMS estima que, a cada ano, são feitos 22 milhões de abortos em condições inseguras, levando à morte cerca de 47 mil mulheres, além de causar disfunções físicas e mentais em outras 5 milhões. Já “nos locais com poucas restrições ao acesso a abortamento seguro, a taxa de mortes e doenças cai drasticamente”, afirma a organização, que constatou diminuição no número de abortos realizados nesses países.
É importante lembrar também que o aborto proibido torna a gravidez compulsória. Que a descriminalização do aborto não impossibilita nem menospreza a educação sexual, para informar, e a prevenção, para não engravidar.
Para isso, precisamos de mais políticas públicas a respeito, de um serviço de saúde respeitoso que dialogue com as mulheres e preste apoio, não que as julgue e incrimine logo na primeira oportunidade, afastando assim as pacientes que procuram meios inseguros e fontes externas.
O novo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), já disse que a votação da legalização do aborto só passa se for “por cima de seu cadáver”, alinhando-se com aqueles que se dizem “pró-vida”.
Ora, questiono, por cima dos cadáveres de quem? Pró-vida de quem?
Das 47 mil mulheres que morrem por ano ou de cada mulher que morre a cada 2 dias no Brasil? O então movimento das redes sociais, “Diga não ao aborto”, surge num momento oportuno condizente com a nomeação de Eduardo, de sua aproximação com a bancada religiosa e barra um avanço necessário para a saúde pública do país.
Não precisamos disso. O que precisamos é de educação para aprender, prevenção para não engravidar e aborto para não morrer. Somos todas anti-aborto sim, mas não podemos fechar os olhos para as 47 mil mortes que ocorrem por ano simplesmente porque o Estado não acompanha essa prática de perto. Aborto legal e seguro é o melhor caminho para redução de aborto, de mortes e de danos.
Afinal, o que fazer com a família dilacerada que resta quando morre uma mãe de 2, 3 ou 4 filhos num procedimento inseguro?
