Somos enviados desde muito pequenos à escola para receber a educação formal. Nós criamos a escola mas, para os mais novos, parece que foi há tanto tempo que é como se ela sempre tivesse estado ali: algo natural e fatídico. Não é como se a escola fosse uma invenção humana, um produto da ação humana e, como tal, com uma finalidade e objetivo definidos.
Desde a mais tenra idade, sem saber por que, lá estamos nós. Nossos pais nos mandam e vamos. E continuamos na escola toda nossa juventude nos esforçando para entrar na faculdade, outro tipo de escola. E passamos a vida escolar em função disso. Quem não quer fazer faculdade ou não consegue entrar sabe bem o que é a (re)pressão social, a necessidade de feedback dos familiares e amigos. Eles esperam que você faça isso, como todos. Porque – e muitos julgarão que é essa a função da escola – precisamos dela para ter melhores condições de vida, para sermos mais, para podermos mais. “Para ser alguém”, diz o jargão. Será?
Eis a escolarização. Nada existe fora dos muros de uma educação formal. Muitos sequer saberão que existem outros moldes educacionais, outros conceitos pedagógicos escolares, que não aquele tradicional: 30 a 40 alunos por sala, estudando para obter nota satisfatória, estudando para passar na prova, estudando para passar no ENEM, estudando para ser aprovado na faculdade. Estudando para obter um diploma que define sua vida. O objetivo final, para o aluno, não é o conhecimento, mas a nota, a aprovação, o papel timbrado. O objetivo final, para o Estado, será o conhecimento?
Cada aluno e aluna, criança e jovem, tem hoje sua genialidade, existência, vida e inteligência reduzidas ao boletim bimestral, semestral, anual. Ao certificado que diz: aprovado. Ao diploma que diz: graduado. Não importa suas qualidades, habilidades e ideias. Importa a nota, o papel com os dizeres corretos: decorou, escreveu o que alguém queria ler e passou de ano. Parabéns.
Finda o ensino médio, mais um trabalhador comum no mercado. Finda a faculdade, mais um trabalhador comum talvez no mercado, talvez no funcionalismo público. Finda o ensino técnico, mais um trabalhador na indústria. E o término destes ciclos, vê-se logo, não está necessariamente ligado a melhores condições de vida – como nos vendeu a propaganda social – ou à satisfação pessoal. Muitas vezes o que encontramos, fora da faculdade, é o desemprego que o diploma não resolve e, dentro dela, um questionamento de: será que é isso mesmo o que quero da vida? As pessoas parecem completamente perdidas.
Mas então qual a função da educação formal? Sejamos mais profundos do que “para formar cidadãos”. Para que serve a educação formal? E se serve a algo, também serve alguém. A quem ou a que serve a escola? Qual o seu objetivo? Por que andamos sempre nisto tanto tempo de nossas vidas sem saber se sentiremos, de fato, alguma realização pessoal?
Não é por mero “aprendizado” que, convenhamos, fica muito limitado se reduzido ao caráter institucional. O aprendizado se dá a todo momento, a cada segundo, é um processo inato e vivo no ser humano, constante, num fluxo impossível de ser estanque. Enquanto estamos vivos, enquanto estamos em contato com o meio, estamos aprendendo. Escola não é sinônimo de aprendizado. Escola não é sinônimo de educação. Então, se aprendemos fora da escola, por que precisamos aprender dentro da escola? Existe educação fora da escola?
Não é verdade, como muitos aceitam com excessiva e natural passividade, que a escola sempre esteve lá. A educação, esta sim, sempre existiu. Sob muitas formas. Pensemos a antiguidade: em Esparta, crianças eram educadas desde os 6 ou 7 anos na arte da guerra. Aprendiam a lutar, usar armaduras e armas. Era a educação militar, pois era essa a necessidade da sociedade da época: em era de guerras, onde o poder se fazia por meio de lutas, a casta dominante precisava de soldados, de guerreiros. Ensinava-se a guerra, formavam-se soldados. Em Atenas, sabidamente mais aberta e menos militar que Esparta, aprendia-se filosofia, oratória, argumentação, tese, antítese. Aprendia-se a falar, pois era também uma necessidade da sociedade em questão: Atenas desenvolvia-se como uma gigante em termos de democracia, a primeira numa organização política tão avançada – tanto que deles ainda bebemos muito à fonte também para criar a estrutura de república. A educação era humanista, política, filosófica.
Na mudança da Antiguidade para a Idade Média, uma nova configuração se fazia. Novo sistema econômico, novo sistema político. Novas formas das sociedades se organizarem. Os maiores poderes que governavam a sociedade eram a Igreja e a Nobreza. De modo que a educação era só para nobres e para o clero, mas a direção estava inteiramente sob os cuidados da Igreja. Na busca pela hegemonia, tentando equalizar as antigas crenças e se consolidar, a Igreja formava sua base resgatando textos clássicos da antiguidade e adaptando-os à sua conveniência: a escola religiosa formava novas lideranças religiosas. A nobreza era a outra face do poder, a única com acesso a essa escola – conforme aprovação dos bispos e diretos das escolas eclesiásticas. Lembrando que a Idade Média compreende um período de mil anos, portanto muita coisa se passou: na arte, nas línguas, na literatura, surgiram as universidades!
Entretanto, devo ressaltar que a instituição educacional nunca foi um direito natural das pessoas, da Antiguidade à Idade Moderna. Pelo contrário: era um privilégio dos nobres e poderosos. A escola era só para quem podia arcar com as despesas. Na Antiguidade, os sofistas cobravam pelas suas aulas e exatamente por isso Sócrates foi bastante perseguido (pois não cobrava por nada, andava pelas ruas e falava com quem quer que se interessasse), por exemplo. O povo não recebia qualquer instrução, sua função era servir e trabalhar – seja como escravo, como vassalo ou, posteriormente, como assalariados nas fábricas da burguesia.
Vejam, até aqui vimos a escola como um espaço financiado por um poder – Estado ou Igreja aliada/supervisionada pelo Estado – e com o objetivo de educar pessoas para aquilo que o contexto exigia: militares, oradores, médicos ou lideranças religiosas. Sempre acompanhando as mudanças da sociedade no panorama político e econômico. Pensando a Antiguidade, não havia necessidade de formar lideranças religiosas quando não havia a Igreja, por exemplo. Já na Idade Média, com o surto de doenças e pragas que reduziam a expectativa de vida para míseros 35 anos, obviamente urgia formarem médicos e não só toneladas de militares. Portanto, as pessoas sempre foram mandadas para atender uma determinada necessidade aplicada à conjuntura do poder da época. O poder é religioso, precisa-se de religiosos. O poder é militar, precisa-se de militares. E agora, qual é a nossa época?
A partir do século XVIII, com a chegada das revoluções industriais, o ocidente muda por completo. Seu contexto político e econômico passa por uma verdadeira revolução: a burguesia – os antigos mercadores livres da Idade Média – derruba o Absolutismo Monárquico e se torna a nova classe dominante, a nobreza do novo século; os mercadores, antigamente, viviam da venda de sua mercadoria, mas o trabalho manual, como faziam os artesãos, era pouco para atender a demanda. Pouco e lento. Para conseguir mais lucro, precisava-se de algo mais rápido. Assim vieram as máquinas e a revolução industrial, com linhas de produção muito maiores e mais rápidas que as mãos dos artesãos, gerando mais mercadorias e, consequentemente, mais lucro. Essa era a nova ordem mundial: indústria e burguesia. Consolidava-se o capitalismo, sistema econômico baseado no lucro e na mais-valia.
Ainda havia a Igreja, ainda existia seu poderio, mas não tanto quanto na Idade Média. A burguesia tratou de colocá-la em seu devido lugar, mas nunca deixando, de fato, de se aliar a ela. Antes um aliado que um inimigo poderoso, não é verdade? Portanto, a educação religiosa continuava a existir. Mas agora havia a necessidade de formar mão-de-obra especializada para as fábricas. Não podia mais ser os artesãos, não tinha mais essa de trabalhar nos campos dos senhores feudais. Não havia mais suseranos. Os camponeses, sem campo, viram-se perdidos e obrigados a trabalhar na fábrica. A burguesia e o capitalismo reinventaram, então, a escola para a nova necessidade da época: mão-de-obra técnica. Trabalhadores para o novo sistema econômico.
Marx (1992, p. 15) fala dessa mudança promovida pela Primeira Revolução Industrial. Por exemplo, no caso de um relógio que era inteiramente produzido por um único artesão, com as linhas de produção industrializadas, passa a ser produzido por vários trabalhadores, uma vez que o trabalhador já não tem mais o domínio do todo e sim da parte apenas. Marx ainda explicita que “devido à divisão de trabalho no interior dos diferentes ramos, assiste-se ao desenvolvimento de diversas subdivisões entre os indivíduos que cooperam em trabalhos determinados”. São essas subdivisões criadas pela indústria, da necessidade de produção na lógica de lucro e demanda do Capital, que também é adaptada a educação formal: a educação especializada em coisas muito específicas, não mais a educação genérica da Antiguidade ou da Idade Média. Essa foi a Primeira Revolução Industrial. A segunda viria perto de 1900, seria a da metalurgia, do aço, da química, a linha de produção das fábricas automobilísticas. Qual era a necessidade então? Uma escola técnica, profissionalizante, capaz de formar mão de obra qualificada e trabalhadores mecânicos – nada de muito raciocínio, apenas mecânico. A escola e a linha de produção.
Espere aí! 1900 não está tão longe assim…
Apresento-vos, Durkheim. Talvez já tenham ouvido falar desse nome. Émile Durkheim foi um sociólogo francês, um dos nomes mais fortes nas ciências sociais. Vale a pena lembrar que a Sociologia, como disciplina e ciência, de fato nasce após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial com o objetivo de encontrar respostas e reorganizar aquela nova sociedade que se apresentava, perdida com a mudança tão radical: camponeses sem campo, nova ordem política, a implantação da indústria e todos os prós e contras que isso trouxe. Veio então Marx, com sua análise do novo sistema econômico, totalmente pessimista em relação ao capitalismo. E após ele, Durkheim, completamente a favor do novo sistema. Durkheim aperfeiçoou o positivismo de Comte e propunha novas ideias para a organização daquela sociedade com promessas prósperas.
Segundo Durkheim, a sociedade é comparada a um organismo vivo, como um corpo humano, que é composto por diferentes partes, cada qual com sua função específica, mas dependendo umas das outras. Todas as partes trabalhariam unidas para a saúde do corpo, que deveria estar integrado, em harmonia, em ordem para que pudesse haver o desenvolvimento, ou seja, o progresso. É este o funcionalismo, todos trabalhando, cada qual limitado ao seu campo, para que tudo funcione perfeitamente. E o ponto mais pesado e importante da teoria de Durkheim para a educação: a consciência una e múltipla. Una porque é unitária, toda uma classe receberia a mesma educação para que tivesse consciência coletiva; e múltipla porque cada classe teria a sua, diferentes de uma pra outra. E quais eram as classes? Burguesia e proletariado.
Portanto, a burguesia receberia a educação conforme sua classe e os trabalhos privilegiados que lhes competiam e a o proletário receberia uma educação diferenciada, porque era outra classe e com outras funções, para exercer o trabalho que lhe cabia. Tudo muito quadrado dentro da sua caixinha, cada qual conformado em seu canto para o perfeito funcionamento do corpo vivo chamado Capitalismo. Logo, a escola inculca valores para a consciência una da classe para que produza o resultado esperado.
Seria isso tão diferente do que temos hoje?
Pensando o caso brasileiro, por exemplo, dificilmente o positivismo de Comte e Durkheim, alastrado pela Europa numa rapidez impressionante, não chegaria aqui. Primeiro por estarmos sob total domínio de Portugal, depois porque tendo iniciado a exploração em 1500, com 200 anos de educação jesuíta, só no século XIX chegariam as primeiras universidades brasileiras. Até então, quem quisesse cursar a academia precisava ir até a Europa. Quem podia bancar a educação dos filhos, bancava – ou seja, novamente só os nobres – sua ida a Portugal, França, Inglaterra para que fizessem seus estudos. A França era um destino comum e, sendo esta a cidade natal de Durkheim e berço da Revolução Burguesa, obviamente respira os ares mais empolgados do positivismo. Praticamente tudo aquilo que tínhamos no Brasil era uma cópia daquilo que se fazia na Europa, trazida pelos próprios portugueses que a replicavam aqui ou por aqueles que iam estudar fora e voltavam “doutos”, admirados pelos seus novos conhecimento metropolitanos, modernos e revolucionários.
Na prática, isto se dá de forma muito mais explícita do que imaginamos. A “democratização” da escola, no Brasil, veio bem tardiamente, por volta dos anos 30 e 40. Resumindo com Anísio Teixeira:
Somente no século dezenove é que o Estado entra maciçamente a interferir na educação e, a princípio, apenas para oferecer um mínimo de educação escolar, considerado necessário para a nova vida em comum, complexa e progressiva da civilização industrial moderna.
Esse mínimo, que logo se faz compulsório, não tem, entretanto, o antigo caráter de manter alto ou elevar o status social do educando, mas visa, tão somente, e nunca é demais repetir, dar a todos, aquele treino mínimo, considerado indispensável para a vida comum do novo cidadão no estado democrático e industrial. (…) A longa associação da educação escolar com as classes mais abastadas da sociedade determinou que só em mínima parte a escola se fizesse realmente selecionadora de valores. Forçada a receber todos os alunos, cujos pais estivessem em condições de arcar com os ônus de uma educação prolongada dos filhos, independente da sua capacidade individual, a escola desenvolveu uma filosofia de educação, que qualificaríamos de extremamente curiosa, se a ela não estivéssemos tão habituados. Tal filosofia era a de que quanto mais inúteis fossem os estudos escolares, mais formadores seriam eles da chamada elite que às escolas fora confiada. Não se sabia o que seus alunos iriam fazer, salvo que deveriam continuar a pertencer às classes mais ou menos abastadas a que pertenciam. Logo, se se devotassem os alunos a estudos, inúteis em si mesmos, mas reputadamente formadores da mente, deveriam, depois, ficar aptos a fazer qualquer cousa que tivessem de fazer, na sua função de componentes do chamado escol social… E assim se afastou da escola qualquer premência do fator “eficiência”, chegando-se a considerar tudo que se pudesse chamar de “prático” ou “utilitário” como de pouco educativo.
Vemos, novamente, que a escola era uma ferramenta do Estado, aprisionando seus alunos às suas classes, como idealizava Durkheim, para o bom funcionamento da economia – formando mão de obra para a indústria e o Capital. Percebe-se que o surgimento da escola e das universidades no Brasil sempre foram fatores relacionados às necessidades de uma elite aristocrática e da sua preservação.
Ainda mais prático que isso, posso oferecer-vos uma imagem daquilo que era a educação formal na década de 50, 60 e começo de 70 (perceba: a escola “para todos” era recém implantada, visto que os movimentos ganharam força no fim da década de 40): dois eram os caminhos da educação formal, sendo eles o ensino técnico ou o ensino regular (para vestibular). Quem cursasse o ensino técnico, que formava mão de obra especializada para a indústria, não poderia prestar vestibular para entrar na academia, a não ser que começasse tudo de novo, do zero. O Prof. Luís Carlos, da USP, conta um pouco sobre o ensino regular:
(…) a função central das escolas públicas de ensino médio regular, não-profissionalizante, era principalmente a de preparar, para as universidades, jovens de uma elite cultural, originários da elite econômica e de classes médias em ascensão. Eram escolas altamente seletivas, com exigentes exames de ingresso, que filtravam uma “nata da nata”, uma vez que mesmo para o acesso ao antigo ginásio, que hoje corresponderia à passagem para a quinta série do ensino fundamental, havia exame de admissão.
Portanto, temos uma escola mais acessível que forma mão-de-obra para a indústria e uma escola excludentemente seletiva para a elite que formava os acadêmicos, a sequência da elite. É ou não é exatamente o que pregava Durkheim e o seu funcionalismo para manutenção do Capitalismo?
“Hoje não é assim”, talvez você me diga. Lembro que falamos de uma geração atrás, apenas, a geração de nossos pais. Não faz muito tempo, quanto mudou? Mais que nunca vemos aparecer aos milhões centros de cursos técnicos, escolas técnicas, institutos científicos, prontos para formar atendentes de call center, mecânicos, empregados da indústria automobilística e vemos, também, a universidade com uma porta de entrada, chamada ENEM, que cobra um conteúdo que está longe do alcance da classe pobre que precisou da escola pública precária fornecendo um ensino fundamental precário, um ensino médio ruim e resultando num ensino superior (quando resulta) porco.
Tão diferente assim?
Portanto, depois de tudo isso, pergunto novamente: para que e a quem serve a escola? Para realização pessoal das pessoas, busca de conhecimento, melhorar sua condição de vida OU para reproduzir a ideologia do Estado, manter rigidamente a divisão de classes sociais e produzir mão de obra para o Capitalismo?
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